A doença de Gaucher é uma doença de origem metabólica,
de natureza hereditária, com várias mutações no gene que produz a enzima ß-glucosidase.
Esta doença foi descrita pela primeira vez em 1882 pelo Dr. Philippe
Charles Ernest Gaucher, em uma mulher de 32 anos com baço muito maior do que o
normal, não reconhecendo sua natureza sistêmica e nem sua predileção pelo sistema
reticuloendotelial. A
doença foi realmente reconhecida no início de 1900 e denominada Doença de Gaucher
em homenagem ao Dr. P. Gaucher, em crianças e adultos com baços muito grandes
e com outros órgãos envolvidos, e com recorrência familiar. A natureza metabólica
foi descoberta em 1916, quando pesquisadores verificaram que o acúmulo de material
no baço e outros órgãos era lipídico e o denominaram de glucosilceramide. Posteriormente
Brady, Patrick e colaboradores demonstraram que o glucosilceramide não era hidrolisado
(quebrado) dentro das células, particularmente nos lisossomos, porque faltava
uma enzima intracelular que foi denominada ß-glucosidase. Como a localização desta
enzima é nos lisossomos, a doença de Gaucher foi então incluída como doença de
depósito lisossomal. Portanto, a doença de Gaucher é uma doença de armazenamento
glicolipídico. Os lisossomos são organelas citoplasmáticas presentes
em todas as células, que contém enzimas que são capazes de degradar tanto os produtos
naturais do metabolismo celular como materiais estranhos ingeridos pelas células.
Nas doenças chamadas de lipidoses há deficiência ou falta de enzima específica
no metabolismo lipídico e portanto, não há degradação nos lisossomos ocorrendo
acúmulo de material lipídico. O glucosilceramide é um glicolipídeo presente em
todas as membranas celulares, sendo sua maior fonte a decomposição das membranas
dos elementos formadores do sangue. Esse material não ingerido acumula-se nos
lisossomos das células do sistema reticuloendotelial, produzindo as características
células de Gaucher, que são grandes por acúmulo de lipídeos. Encontram-se particularmente
abundantes no baço, no fígado e na medula óssea. A doença de Gaucher
é dividida em 3 tipos principais de acordo com achados clínicos e envolvimento
do sistema nervoso (Tab. 1) O tipo 1, ou adulto, é o mais comum, tem
curso crônico sem envolvimento do sistema nervoso central. O tipo 2, ou infantil,
é a forma neuropática aguda, geralmente letal até os 2 anos de idade. O tipo
3, ou juvenil, forma neuropática subaguda, também apresenta envolvimento do sistema
nervoso central.
Designação |
Característica | Tipo
1 Não- neuropático (adulto ou crônico) | Tipo
2 Neuropático agudo (infantil) |
Tipo 3 Neuropático subagudo (juvenil) |
Incidência | 1
em 40.000 / 60.000 (mais comum em judeus Ashkenazi) | <
1 em 100.000 | <1 em 50.000 |
Grupo
étnico e maior prevalência | Panétnico
(mais comum em judeus Ashkenazi) | Panétnico | Panétnico
(mais comum em suecos Norbottnianos) |
Idade de início e duração | Qualquer
idade (6 a 80 anos ou +) | Infância
(até 2 anos) | Infância (2
a 60 anos) | Doença
primária de SNS | - | +++ | +
até +++ (1ª a 5ª décadas) |
Hepatoesplenomegalia | +
até +++ | ++ | +
até +++ | Alt.
Hematológicas | + até +++ | +++ | +
até +++ | Alt.
Esqueléticas | - até +++ | - | -
até +++ | INCERTI,
1995 | -
ausente | + leve | ++
moderado | +++ intenso
A maioria dos
pacientes com doença de Gaucher são do tipo 1, forma sem comprometimento do sistema
nervoso. A doença pode se manifestar em qualquer idade e a gravidade dos sintomas
está relacionada com o grau de depósito e infiltração dos órgãos envolvidos.
As manifestações mais comuns ocorrem no sangue, fígado, baço e ossos.
Os achados hematológicos principais são anemia e níveis baixos de plaquetas
(também chamado de trombocitopenia). Em geral, há anemia porque o baço é muito
grande e os glóbulos vermelhos vivem menos porque há infiltração de células de
Gaucher na medula que produz os glóbulos vermelhos. Os níveis de hemoglobina raramente
diminuem para menos que 8g / dl e geralmente não são necessárias transfusões.
Os níveis baixos de plaquetas ocorrem tanto pela infiltração medular
como pelo baço aumentado que seqüestra estes elementos. As manifestações iniciais
que chamam a atenção são decorrentes de sangramentos como hematomas, durante a
menstruação e epistaxes (sangramento pelo nariz) sendo comuns na infância.
O baço pode estar aumentado desde os primeiros anos de vida. Em geral, o
aumento é lento e os pacientes não têm sintomas. Em alguns casos, o baço
pode ficar muito grande levando a aumento do volume, grande distensão abdominal
e dor. O fígado está aumentado de volume em mais da metade dos casos.
Alguns pacientes demonstram evidência de doença hepática crônica com complicações
como hipertensão portal, podendo ter varizes de esôfago. O comprometimento
ósseo é muito freqüente e pode ser a causa de sérias debilitações. As alterações
ósseas encontradas na doença de Gaucher são variáveis e podem ser resumidas em
cinco categorias: 1.
falha do remodelamento ósseo, evidenciado no RX pela deformidade "em frasco de
Erlenmeyer", particularmente no fêmur distal ou na tíbia proximal. 2.
osteopenia: os pacientes costumam ter diminuição significativa da massa
óssea em relação às pessoas saudáveis da mesma idade e sexo. A osteopenia pode
ser difusa ou localizada, aumentando os riscos de fraturas, sendo, em geral, o
primeiro achado na doença de Gaucher. Às vezes podem ocorrer infartos ósseos.
3. osteoesclerose 4.
osteonecrose 5. crise óssea A osteonecrose
ou necrose avascular acomete metade dos pacientes com doença óssea. Constitui
a mais debilitante das manifestações da doença de Gaucher. A necrose asséptica
da cabeça e colo do fêmur altera a estrutura do osso e, eventualmente, é seguida
por deformações da cabeça e alteração secundária do acetábulo, com redução do
especo articular do quadril. A necrose avascular geralmente é subseqüente
a episódios de crise óssea localizada em determinada região, provocando dor aguda
ou crônica, às vezes acompanhada de febre alta e sinais inflamatórios. Pode ocorrer
em qualquer idade, sendo mais freqüente na infância e adolescência, mais comum
em ossos longos, principalmente fêmur distal, tíbia proximal, úmero, seguido da
espinha e pelve. Alguns pacientes apresentam alteração da absorção do
cálcio e vitamina D, além de alteração no metabolismo da vitamina D, levando a
osteoporose. O acometimento pulmonar é mais raro, assim como a doença
renal. Muitos pacientes com doença de Gaucher apresentam cansaços, perda de peso
e não conseguem ficar em jejum prolongado. São freqüentes o retardo
de crescimento e o atraso da puberdade. As mulheres podem engravidar, mas durante
a gravidez podem aparecer novamente anemia, baixo nível de plaquetas e as dores
ósseas surgirem ou piorarem. Em muitas mulheres as gestações completam-se em complicações
da doença. |